terapia digital

Nos últimos 100 anos, os cuidados de saúde tiveram uma forte influência do que muitos chamam de medicalização da saúde. Como consequência dessa influência  , a maior parte dos  tratamentos médicos foram baseados na prescrição de medicamentos, que podiam assim ser produzidos em larga escala, a preços acessíveis com embasamento científico que demonstrava sua segurança e efetividade para serem utilizados nos seres humanos.

Hoje, estamos vivenciando a expansão de um novo modelo, chamado de Terapia Digital. Segundo Bozidar Jovicevic, Head do Departamento de Terapêutica Digital da Sanofi, a Terapia Digital, pode ser definida como soluções não farmacológicas, focadas em tecnologia, que funcionam como uma terapia autônoma ou são combinadas com medicamentos para melhorar os resultados dos pacientes. 

Aplicações e benefícios das terapêuticas digitais

Embora o foco dos sistemas de saúde tenha se voltado principalmente para os cuidados da saúde, já é amplo o conhecimento de que no resultado de saúde das pessoas  os cuidados clínicos contribuem apenas com  20%  no estado de saúde de um indivíduo. Na sequência dos fatores que determinam a saúde de uma pessoa, estima-se que cerca de 20 a 30% são determinantes relacionados a comportamentos dieta, exercício, estilo de vida, pensamento positivo, técnicas de atenção plena, parar de fumar e coisas assim. E o resto é ambiental, social, genético e psicológico.

Como empresa da área da saúde fazemos parte  desses 20% dos cuidados clínicos mas estamos atentos de que o papel dos determinantes sociais que estão relacionados ao comportamento e hábitos de vida é enorme. Nos Estados Unidos, mais de 80% dos custos com saúde US$ 3,4 trilhões, quase 20% de toda a economia são gastos em doenças que podem ser evitadas  ou mesmo revertidas através de mudanças de comportamento, que podem ser potencializadas com o auxílio de terapias digitais. 

Outro elemento é o prolongamento do tempo de vida. Se olharmos para as principais tendências, as pessoas em média estão vivendo mais, e o impacto dessa longevidade é o aumento de doenças crônicas associadas ao envelhecimento. E, na medida em que populações envelhecem, sistemas de saúde têm cada vez mais dificuldade em atender a demanda de pacientes, tanto em países em desenvolvimento quanto em países desenvolvidos. Enquanto a demanda por cuidados de saúde aumenta, o acesso a smartphones e internet, que por sua vez abrem novas fronteiras de produção e consumo na área da saúde, também cresce. Essa combinação de fatores cria um ambiente favorável para o aporte de soluções digitais com potencial para auxiliar mudanças de comportamento, e de melhorar os resultados de saúde em grande escala. 

Assim, o uso das terapias digitais com foco na promoção de saúde física e mental tem avançado cada vez mais, com resultados positivos e benefícios para os pacientes, os médicos, os sistemas de saúde e as demais empresas envolvidas nesse processo. Por conta da crescente demanda, os investimentos em empresas de terapias digitais, se somente considerarmos os Estados Unidos, aumentam cerca de 40% ao ano, com um valor de aproximadamente US$ 1 bilhão, apenas em 2018.

A terapia digital possibilita que os pacientes sejam tratados por meio de plataformas tecnológicas, com softwares que foram desenvolvidos com o embasamento em evidências e resultados comprovados cientificamente.   Estas ferramentas podem ser usadas sozinhas ou ainda em conjunto com medicamentos tradicionais, dispositivos eletrônicos como wearables (vestíveis) e outras terapias, que podem ser tanto presenciais quanto remotas.

A terapia digital pode ser aplicada em uma grande variedade de problemas de saúde física e mental, incluindo diversas áreas da medicina como, por exemplo, distúrbios dos sistemas nervoso, endócrino, respiratório, circulatório e digestivo; doenças sanguíneas, neoplasias; entre outras, incluindo ainda problemas mentais, comportamentais e cognitivos. 

Diferença entre terapias digitais e outras ferramentas

É importante não confundir as terapias digitais com os aplicativos de saúde e bem-estar que hoje estão disponíveis aos montes nas lojas digitais. Estes aplicativos servem de apoio para mudanças de hábitos e desenvolvimento de uma vida mais saudável, mas geralmente não tiveram sua eficiência comprovada por estudo clínicos de maior peso científico e também    não estão sob regulamentações de órgãos da saúde. Já as ferramentas das terapias digitais são analisadas por órgãos reguladores que podem garantir que tenham exatamente os efeitos a que se propõem, sem oferecer riscos aos usuários. A terapia digital usa softwares construídos com base em evidências clínicas, ou seja, primeiro os resultados são apurados e aprovados em pacientes reais e se transformam em modelo para orientar outras pessoas que utilizam aquele software. A maioria dessas soluções faz a coleta de dados em tempo real, por meio de sensores usados pelos pacientes ou através do fornecimento de informações dos participantes. Existe ainda, uma diferença fundamental: enquanto os aplicativos de saúde e bem-estar são disseminados por meio de comunicação, por indicações de conhecidos ou mesmo por anúncios publicitários específicos, as soluções de terapia digital são prescritas por um médico, como forma de prevenção ou tratamento a uma determinada condição de saúde.

Exemplos práticos em áreas distintas

Uma das aplicações pioneiras e ainda com grande destaque no tratamento de doenças crônicas  é o uso da terapia digital na prevenção e controle da diabetes, considerada uma das grandes epidemias do Século XXI. Este artigo no The Economist mostra o exemplo de uma paciente que conviveu com a diabetes por 23 anos e viu sua vida mudar a partir do momento que passou a fazer o controle de peso e do nível de açúcar no sangue por meio do aplicativo de celular prescrito por seu médico. O aplicativo receitado já está na lista entre os aprovados pelo FDA americano (United States Food and Drug Administration) para tratamentos que vão desde diabetes até uso abusivo de substâncias.

A diabetes é uma das doenças que fazem parte dos programas da Omada Health, que foi reconhecido pelo CDC (Centro de Prevenção e Controle de Doenças) americano, em 2018, como o maior Programa de Prevenção de Diabetes, presencial ou virtual. A empresa oferece programas digitais de cuidados customizados para prevenção de diabetes tipo 2, hipertensão e saúde mental. O processo inclui atendimento com profissionais para orientação de saúde, uso de dispositivos de controle como monitor de pressão arterial e glicose. Os participantes passam a integrar comunidades online, onde são motivados e encorajados, englobando ainda sessões interativas semanais.

Os protocolos da Omada Health são baseados em evidências científicas e foram publicadas em diversas revistas.  Um exemplo são os resultados de perda de peso do programa de prevenção que demonstram uma significativa redução de risco em três doenças crônicas, sendo 30% a menos no diabetes tipo 2, 16% menos em acidentes vasculares cerebrais e 13% em doenças cardíacas. Depois de uma primeira fase intensiva de 16 semanas, os participantes perderam em média cerca de 4% do seu peso corporal, sendo que 40% deles conseguiram perder 5% ou mais. E o mais animador é que o relato aponta que os dados coletados durante dois anos mostram que conseguiram manter isso que foi conquistado.

Os exemplos de uso de terapias digitais não se restringem ao tratamento das doenças crônicas. Algumas soluções da  terapêutica digital incluem por exemplo, uma plataforma que incorpora a musicoterapia neurológica, sensores e inteligência artificial para a reconstrução de habilidades motoras de pacientes que sofreram um derrame ou outro distúrbio neurológico; ou ainda um aplicativo de celular para conduzir eletrocardiogramas de qualquer lugar e em qualquer momento.

Também existem diversas soluções para tratamento de problemas de saúde mental e comportamental. Este artigo publicado na Nature mostra o exemplo de um jogo para tratamento de psicose, que simula situações que pessoas nessa condição teriam medo, ajudando-as para que sintam-se mais seguras e assim aliviam os sintomas de modo geral. A tecnologia, chamada Game Change VR, foi vencedora do prêmio de invenção para inovação de saúde mental do NIHR (National Institute for Health Research) do Reino Unido. Usando realidade virtual que simula cenários reais, onde pacientes com doenças mentais poderiam enfrentar problemas, os pacientes vão passando, de forma gradual, por situações que na vida real teriam muita dificuldade em lidar, e quando de fato precisam vivenciar esses acontecimentos já estão melhor preparados.

Além do Game Change VR, o artigo mostra outros dois cases relevantes, mas em um cenário diferente das terapias digitais: o uso da tecnologia para o controle da medicação correta e apoio nos tratamentos farmacêuticos tradicionais. Essa solução é especialmente útil, quando sabemos que no mundo, entre um quarto e metade das pessoas não tomam seus medicamentos conforme seria a recomendação correta. Somente nos Estados Unidos, isto tem sido ligado a 125 mil mortes e estima-se que custará até US$ 289 bilhões anuais.

Os benefícios para todos

As terapias digitais trazem benefícios para todos os envolvidos nesse processo, incluindo os pacientes, médicos e as instituições provedoras de serviços de saúde. O primeiro ponto é que esse modelo amplia a possibilidade de acesso e opções de tratamentos que antes não eram solucionados ou atendidos por medicamentos e terapias tradicionais, incluindo a expansão dos cuidados fora de um ambiente clínico tradicional.

Os pacientes podem ter acesso a um número maior de terapias, que já foram comprovadas clinicamente, ou seja, são seguras e confiáveis, e isso pode acontecer diretamente na palma da mão, no conforto e privacidade de casa. Isso porque um grande facilitador dessas terapias é o uso do próprio smartphone do paciente.

Já que a tecnologia faz cada vez mais parte da vida das pessoas, a terapia digital usa essa realidade, para que os pacientes aproveitem esse uso praticamenteviciante“dos telefones celulares em favor de suas próprias mudanças de comportamento e hábitos de vida, o que nem sempre é fácil.

Esta mesma facilidade oferecida aos pacientes se aplica aos médicos, que podem oferecer esse atendimento confiável por meio da solução digital, também a partir de seus próprios consultórios e atendendo com segurança um maior número de pacientes. A pesquisa da Associação Paulista de Telemedicina (APM) mostra que quase 99% dos médicos concordam que as soluções digitais trazem avanços para o atendimento aos pacientes e que cerca de 84% acreditam que os smartphones poderão funcionar como guardiões da saúde, permitindo que os pacientes façam em suas próprias casas o monitoramento de determinados aspectos da saúde.

Tanto os médicos como as próprias instituições prestadoras de serviços de saúde podem se beneficiar da possibilidade de gerenciamento da saúde a partir dos dados obtidos pelas terapias digitais ampliando a capacidade de tomada de decisões clínicas a partir disso. Além de que, muitas terapias digitais focam não somente no tratamento, mas também na prevenção, o que ajuda a reduzir casos futuros de doenças e custos com o sistema de saúde.

 Os questionamentos

Mesmo com tantos pontos favoráveis, ainda existem questionamentos que são levantados a respeito das terapias digitais. Um deles está na própria confiança e aderência dos pacientes a essa nova metodologia, pois muitas pessoas podem ter dificuldade em acreditar que um software vai ser tão eficiente quanto um medicamento ou outro tratamento tradicional.

Além da possibilidade de desconfiança em relação à eficácia, muitos pacientes podem se sentir menos assistidos por meio do software, já que o contato humano ainda é considerado parte essencial no tratamento da saúde. Muitas pessoas só se sentem seguras e confiantes quando podem ir até um consultório e ficar frente a frente com o seu médico.

Temos também que considerar a questão da regulamentação e controle, já que com a grande disseminação das terapias digitais aumenta a necessidade de veracidade e segurança confirmando que determinada solução realmente foi testada clinicamente e entrega o tratamento com os resultados propostos.

O FDA define terapêutica digital, como um dispositivo médico, que não é  um medicamento, sendo  destinado ao uso para  diagnóstico de doenças ou outras condições, na cura, mitigação, tratamento ou prevenção de doenças.

Também existem questionamentos em relação à própria tecnologia em si da qual a terapia depende, como por exemplo o sistema operacional utilizado, a conectividade ou o dispositivo, e se essas tecnologias também deveriam ser reguladas. Isso considerando por exemplo, um paciente que faz um tratamento que depende da conexão constante, se houver falha, que risco isso ofereceria.

Outro ponto é a necessidade ou não de atualização constante da regulamentação, considerando que os reguladores aprovam um produto que pode evoluir continuamente. As ferramentas para terapias digitais são feitas com base em resultados clínicos reais, mas também utilizam a inteligência artificial e algoritmos em seu desenvolvimento e que sofrem mudanças constantes. Esse é um critério que precisa ser analisado para que a regulamentação não perca sua validação ao longo do tempo.

Sem dúvida, existem muitos fatores que precisam ser ponderados, mas o fato inegável é que as terapias digitais já trazem uma nova realidade para a saúde. Representam uma perspectiva positiva que amplia as possibilidades de prevenção e tratamento de doenças, trazendo as soluções de saúde cada vez mais para o dia a dia dos próprios pacientes e gerando novas oportunidades de atendimentos para os médicos e o sistema de saúde.

A pandemia acelerou a transformação digital da cadeia de saúde

A quarentena acelerou o aderência  digital dos profissionais de saúde, aumentando suas presenças nas redes sociais, levando-os a realizar consultas através da telemedicina e criando infoprodutos para compartilhar seus conhecimentos. Agora, a nova fronteira que se alcança é a cocriação de terapias digitais que podem funcionar de forma isolada ou combinadas com as terapias medicamentosas. Em breve, os profissionais de saúde,  no final da teleconsulta, poderão prescrever terapias digitais como forma de tratamentos. 

E você, que é um profissional da saúde, já se considera preparado para esse novo modelo de prescrição ou já pensou em criar seu próprio infoproduto? Para atualizar seus conhecimentos e se manter um profissional relevante para seus pacientes, continue nos acompanhando.

Dr. Leonardo Aguiar

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